Há muito, muito tempo mesmo, que não trago aqui ao blogue a rubrica “Vidas – entre a realidade e a ficção”. Tanto tempo que considero que talvez deva relembrar que nesta rubrica falo de pessoas comuns, com vidas perfeitamente ordinárias. Ainda assim, e por alguma razão, apetece-me falar-vos delas e dar-vos a conhecer essas pessoas que, por alguma razão, me parecem dignas de gerar interesse. Relembro ainda que as personagens que aqui vos trago podem apenas existir na minha imaginação, serem, pelo contrário, personagens absolutamente verdadeiras ou terem um tanto de real e outro tanto de ficcionado. A decisão será vossa!

Posto isto, hoje quero falar-vos de alguém que conheci este verão. Não sei se também vos acontece mas se há personagens com as quais gosto de conversar um pouco e procurar saber um pouco das suas vidas são os vendedores de toalhas de praia, pulseiras, óculos e mais umas quantas bugigangas que percorrem as nossas praias durante todo o verão. Penso sempre que carregam com eles, para além daqueles expositores cheios de bijutaria e daquelas toalhas ao ombro, uma história de vida interessante e diferente daquilo a que estamos habituados. Como tal, sempre que me é possível, procuro conversar com eles e saber um pouco das suas histórias.
Foi assim que conheci Mamadou. Mamadou apresentou-se como vendedor de pulseiras e colares. Não vos poderia falar dos olhos de Mamadou, do seu nariz. Não seria capaz, neste momento, de pintar o seu rosto, nem que fosse em pinceladas largas. Dele apenas lembro o sorriso rasgado que lhe iluminava o rosto. Gosto de pessoas que sorriem. Pessoas que sorriem com a boca toda, claro, mas também com os olhos e com o rosto todo. É-me impossível não simpatizar logo à partida com esse tipo de pessoas. E Mamadou era assim. Um simples “Olá menina, queres comprar uma pulseira?” e eu já estava rendida ao Mamadou e à sua simpatia. E, acima de tudo, já sentia em mim a velha curiosidade a instalar-se!
Disse-lhe que queria ver de mais perto das bijutarias que trazia. Foi o suficiente para o Mamadou se instalar. Percebi desde muito cedo que Mamadou pertencia ao mesmo tipo de pessoas que eu própria: um conversador por natureza, interessado pelas pessoas e pelo mundo. Em poucos minutos já parecíamos amigos de longa data. Encostou-se e não se fez rogado às minhas questões, desfiando os acontecimentos da sua vida sem qualquer pudor. Disse-me que era senegalês. Tinha abandonado o Senegal procurando melhor vida. O seu primeiro destino tinha sido Espanha mas quis a fortuna que viesse até Portugal trabalhar. E disse-me, sempre com aquele sorriso, que adorava o nosso país e que não considerava abandoná-lo tão depressa. Já tinha passado por outros países mas era neste que sentia que poderia construir uma casa. Não sei até hoje se aquele era um discurso treinado para agradar aos veraneantes portugueses mas a verdade é que gostei de o ouvir. Conhecia e tinha passado por vários países. Dessas viagens tinha guardado as paisagens, que dizia serem quase tão bonitas como as de Portugal, e algum conhecimento das línguas de cada um. Disse-me que falava não só francês, como inglês, espanhol, alguma coisa de italiano e, claro, o português. E a verdade é que me disse algumas frases nessas línguas e parecia saber do que falava.
Ainda assim, depois de tantas viagens, Portugal era o país de eleição. Disse-me que tinha deixado no Senegal mulher e filhos. Senti alguma saudade na sua voz quando me falou deles. Ela, a mulher, foi apelidada de Leoa. A Leoa era, de acordo com as palavras dele, uma mulher e mãe de mão cheia. Era ela quem fabricava parte das pulseiras que ele vendia e que depois enviava para ele (acho que me contou isso como uma história que tantas vezes repetiu que já acreditava ser verdadeira!…) Contou-me que esperava já ter amealhado dinheiro suficiente, no próximo ano, para poder mandar vir para cá a família. Para ser completamente feliz, dizia ele, necessitava de ter a sua Leoa por perto e os seus leõezinhos.
Já desconfiava da sua resposta mas perguntei por que razão não tinham todos emigrado ao mesmo tempo, não se separando dos seus mais próximos. Foi este o único momento em que senti o olhar dele ficar sombrio, o semblante carregar-se como que me pareceu ser uma dor profunda. Apagou-se, por momentos, o sorriso e ensombrou-se-lhe o rosto. Respondeu, com o olhar perdido no horizonte, que não desejava que nenhum dos seus passasse e visse o que ele tinha visto para sair do seu país. Tinha vindo, como tantos migrantes, num barco pelo qual tinham pago uma fortuna e que não apresentava quaisquer condições. Disse, com o olhar vago, falando mais para ele do que para mim apenas esta frase lapidar: “sabes, não chegámos todos. Vi morrer colegas meus, sabes?” Fiquei em silêncio. O que poderia eu responder a uma frase destas? Penso que Mamadou também não pretendia qualquer resposta. Instalou-se um silêncio que tanto poderá ter durado segundos como vários minutos. Por momentos parecia que se tinha apagado o sol. E então, Mamadou abanou discretamente a cabeça, como quem quer apagar as imagens que povoaram a sua mente e voltou a acender aquele sorriso enorme que apagava qualquer réstia de tristeza. Olhou-me nos olhos e disse-me: E então? Não posso passar aqui a tarde! Compras-me ou não compras as pulseiras?
Soltei um pequeno riso! Que personagem tão fantástico era este Mamadou! Comprei, então, as famosas pulseiras para o pé feitas de conchas. Tenho quase certeza que as paguei mais caras do que deveria. Mas, que interessava neste caso mais um ou dois euros? Foi uma forma de lhe agradecer este texto que logo me surgiu na mente quando o conheci.
Mamadou despediu-se e nunca mais o vi. Quis antes de ir embora oferecer-me uma tartaruga que, de acordo com ele, abre caminhos. Quis acreditar que assim seria. Aceitei-a e ainda hoje a guardo comigo. Acredito que foi dada num gesto de simpatia de alguém com quem criei empatia ao primeiro olhar e, por isso, só poderá trazer sorte e, como ele disse, abrir caminhos.
Nunca mais vi Mamadou, é certo, mas não posso negar que, bastas vezes, me recordo dele. Onde estará o Mamadou agora? Terá conseguido trazer a sua família? Terá regressado ao Senegal, para receber o abraço e o amor dos seus? Não sei e, com certeza, nunca saberei. No fundo penso que andará por uma qualquer praia de um qualquer país a espalhar o seu sorriso, a sua simpatia e a contar a sua história a quem a quiser ouvir.
Hoje quis falar-vos do Mamadou que conheci numa tarde de verão. Mamadou o migrante que passou horrores procurando chegar à Europa. Mamadou que abandonou a família no Senegal para providenciar a todos uma vida melhor. Mamadou para quem a vida tem sido madrasta mas que não perdeu o sorriso. Mamadou que soube continuar a ser luz! Há personagens assim, que cruzam a nossa vida num instante mas que deixam uma impressão profunda e duradoura…