Estefânia, nome de rainha

Ainda que o blogue se apresente como “o blogue da Steff” (Steff’s World) penso que a maioria saberá que quem o escreve  se chama, efetivamente, Estefânia. Steff é apenas um dos diminutivos pelo qual sou tratada por alguns que me são mais próximos. E, diga-se em abono da verdade, eu nem sequer nasci e fui registada com esse nome. A bebé que já nasceu gorducha e um verdadeiro “come e dorme” foi batizado com o bonito nome de Stéphanie. Quis a vida que deixasse o país onde nasci, França, e viesse viver para Portugal. E, vá-se lá saber porquê, o Registo não aceitou que a menina ficasse a ser chamada de Stéphanie. Quiseram/ obrigaram a que o nome se tornasse mais português e o mesmo foi alterado para “Estefânia”. Inútil será dizer que, num primeiro momento, não consegui de todo identificar-me com esse nome que me era estranho. Continuei a ser tratada pelos meus diminutivos: “Fanny”, “Steff” e pouco caso fiz de um nome que até aquele momento me era desconhecido e demasiado pesado para uma criança de sete anos.

Contudo, nas situações formais, na escola, passei a ser a Estefânia. E, inevitavelmente, com o passar dos anos, habituei-me a ele e a considerar que sou Estefânia antes de qualquer outra coisa. E se antes o achava pesado e antigo, passei a considera-lo distinto, diferente (ainda que tão ouvido em Portugal) e original. Eu era Estefânia! Não era uma Maria!!! O meu nome marcava a diferença e eu gostava (e gosto) disso.

Por me ter habituado tanto ao meu nome, e por ter passado a gostar tanto dele, sempre odiei instantaneamente toda e qualquer pessoa que, depois de ouvir o meu nome, dissesse, achando que tinha piada, a imortal frase: Estefânia? Isso não é nome de hospital?

Não caro “fazedor de piada barata”, não é nome de hospital! É nome de uma rainha que deu nome ao hospital! E é também nome de princesa! Convenhamos, soa muito melhor dizer que é nome de rainha ou de princesa! E diz mais sobre a cultura da pessoa que profere estas frases.

A  verdade é que ainda que a rainha D. Estefânia tenha dado o seu nome para batizar um hospital e até ruas, pouco se fala desta mulher que morreu tão jovem e que teve uma atuação bastante importante no nosso país. Relembrando que julho é o mês do seu falecimento (A rainha D. Estefânia faleceu a 17 de julho de 1859) decidi hoje falar-vos um pouco desta jovem mulher que deixou o seu país e os seus pais para casar com o nosso jovem rei, D. Pedro V.

O seu nome completo era Estefânia Josefina Frederica Guilhermina Antónia. Nasceu em Sigmaringen a 15 de julho de 1837 e virá a morrer, ainda muito jovem, com apenas 22 anos a 17 de julho de 1859.

O casamento foi feito por procuração a 29 de abril de 1858, na Catedral de Santa Edwiges em Berlim. Viajou uns dias depois tendo como destino último o nosso país, tendo chegado à barra do rio Tejo no dia 17 de maio de 1858. No dia seguinte, na Igreja de S. Domingos em Lisboa, casou-se, então com o rei D. Pedro V, tornando-se rainha consorte de Portugal.

D. Estefânia apresentou-se com um vestido branco, com crinolinas que criava um efeito de balão que impressionou as damas da corte. Toda a sua roupa estava adornada com flores de murta e laranjeira e com rendas. Na cabeça trazia um fabuloso diadema oferecido por D. Pedro V, que comportava quatro mil diamantes. A joia cingia-lhe completamente a cabeça. Era uma mulher linda e tinha-se tornado numa noiva deslumbrante.

A determinada momento da cerimónia, D. Carlota, duquesa de Saldanha, começou a notar que a rainha estava a ficar pálida. O peso do diadema (ao fim de duas horas) estava a tornar-se insuportável. Para além disso, parece que uma das pedras estaria mal polida. O diadema provocara-lhe um pequeno corte na testa e três gotas de sangue tinham caído no seu vestido branco. Depressa lhe retiraram a joia, substituindo-a por uma coroa de flores brancas, bem à moda da Baviera. O povo viu esse acontecimento como um mau presságio. Quando a viram sair da igreja murmuravam que a rainha ia já amortalhada, pois não compreendiam a coroa de flores que lhes parecia própria para aqueles que se encaminham para o reino dos céus e não para uma noiva…

Passaram a lua-de-mel em Sintra, passeando de braços dados pela serra repetidas vezes. Desenvolveu-se entre eles um amor que hoje em dia não saberíamos entender mas talvez esse fosse a única forma de amar para aqueles dois entes especiais. Poderíamos dizer que se desenvolveu entre eles uma “amizade conjugal”. Pedro disse que procurava no casamento o “alívio para uma grande ansiedade moral”. Ele vivia angustiado com o atraso do país e com as adversidades políticas. Cultivava poucas amizades. A sua relação com D. Estefânia, que, pelo que se sabe, nunca passou pelo amor carnal, trouxe-lhe uma indesmentível felicidade, um bem estar, a sensação que tinha encontrado a sua alma gémea, que compreendia os seus receios, as suas preocupações, as suas angústias. Tal felicidade era vivida em pleno pelo casal quando viviam afastados do resto do mundo, numa bolha, num pequeno paraíso criado por eles como, por exemplo, quando estavam em Sintra.

Do pouco que se sabe de D. Estefânia sabe-se que era cosmopolita e liberal, tal como o marido. Sabemos que era preocupada com os mais pobres e desfavorecidos. Procurou que fossem criados hospitais e instituições de caridade. Depressa criou uma aura de popularidade entre os portugueses e muitos a viam como um anjo que lhes trazia a esperança que lhes faltava. Infelizmente, não teve oportunidade de fazer o tanto que ela pretendia e que se poderia esperar da sua atuação enquanto rainha. Apenas 14 meses após chegar a Portugal e ter casado, D. Estefânia morreu com apenas vinte e dois anos, de difteria. As suas últimas palavras terão sido: “consolem o meu Pedro”.

D. Pedro V terá escrito que a natureza de Estefânia “era perfeita demais para o nosso mundo” e por isso terá partido tão cedo. O próprio D. Pedro não viveu muito mais. Rechaçou a ideia de voltar a casar. Dois anos depois do falecimento da sua mulher, chegou a sua vez de se juntar a ela, vítima de febre tifoide. Contudo, Pedro não partiu sem antes cumprir o desejo da sua mulher: a construção de um novo e moderno hospital que prestasse assistência às crianças pobres e desvalidas – aquele que seria batizado de Hospital D. Estefânia.

Hoje decidi falar-vos da breve, mas tão intensa, vida da rainha D. Estefânia. Uma mulher cujo nome é mencionado diariamente no nosso país mas cuja memória é tão esquecida. Penso que fica claro que chega a ser ofensivo dizer: Estefânia? Isso é nome de hospital! Não caros leitores. Estefânia é nome de rainha! E, acima de tudo, Estefânia é nome de uma mulher que quis ser diferente e, acima de tudo, quis fazer do mundo um lugar melhor. Merece, por isso ser recordada diariamente.

Os meus sapatos de sola de Ceilão

Há algum tempo que estava ausente aqui do blogue. O tempo não estica e a verdade é que não me apetecia escrever…há fases. Regresso hoje com um conto. Ainda que fictício, surgiu-me enquanto conversava e ouvia uma memória emotiva de uma grande contadora de histórias.

Leiam, partilhem, deixem a vossa opinião.

Matilda, na sua cama, mantinha os olhos fechados, enquanto ouvia ao longe, vindos da cozinha, alguns sons familiares que lhe traziam uma sensação de rotina e aconchego: o fervedor do leite que era colocado em cima do fogão, o tilintar da louça – as canecas que eram pousadas em cima da mesa. A acompanhar esses sons, juntar-se-ia, em pouco tempo, o agradável aroma do pão acabado de torrar. Matilde sorria, deleitando-se mais um pouco na cama com estes sons rotineiros que lhe davam uma sensação de segurança, de conforto, de bem-estar.

 Matilda costumava ter preguiça em sair da cama. Gostava de se manter algum tempo naquela preguiça e sonolência matutina ouvindo esses barulhos, provocados pela mãe e que lhe davam tanto gosto em ouvir. A esses sons a que ela dava tanto apreço, juntava-se um que ainda lhe trazia mais vontade de sorrir para o dia, um som que, acima de tudo, lhe trazia segurança e a certeza que o mundo continuava a girar no sentido certo: a voz do pai! O pai hoje estava em casa! Que felicidade!

O pai de Maltida trabalhava longe de casa pelo que toda a lida da casa e a educação dos filhos (três rapazes, que tiravam a paz àquele terreiro onde se encontrava a casa, e uma menina, a mais linda de todos) estavam a cargo da mãe. O pai apenas estava com eles nos seus dias de folga. Esses eram os dias especiais lá em casa! Eram os dias de conversas longas à volta da mesa, o pai fazia questão de se inteirar sobre tudo o que se tinha passado com eles nos seus dias de ausência. Eram os dias de passeio à cidade, com direito a “rajá” para todos. Eram os dias das surpresas boas: o pai fazia questão de sempre trazer algo, um pequeno presente, para os filhos e para a mulher. Não se pense que eram presentes caros! Os tempos eram difíceis. Mas nesse tempo bastava uma mão cheia de caramelos, uns bolinhos de leite, um boné novo para quem dele precisava… E para a mãe, um lencinho de mão ou, até, uma flor colhida pelo caminho. Para ela, o importante era a sua presença e a sua preocupação para com os filhos.  Eram dias de atenção e carinho redobrados, dias em família, dias de felicidade.

O aroma das torradas a chegar ao quarto e a voz do pai já seriam razões suficientes para que Matilda não atrasasse muito o momento de levantar da cama. Mas a lembrança que hoje era o último dia de escola antes das férias de verão a juntar-se ao facto de que hoje ia estrear o vestido novo que a mãe costurara, faziam-na ter quase urgência de saltar da cama e seguir para a escola. O vestido era lindo, branco, com umas florzinhas delicadas espalhadas por todo ele. E, o pormenor que ela achava delicioso, as alças encontravam-se decoradas por adoráveis folhos que faziam lembrar que toda ela era uma flor! Ai que vontade de passear o seu lindo vestido pelas ruas da vila e mostrar como estava bonita aos colegas da escola!

Estava ainda Matilda perdida nos seus pensamentos quando ouviu a voz da mãe chamar. “Matilda! Vamos lá levantar e tratar da higiene. O pequeno almoço está quase pronto e hoje ainda é dia de escola!”

Matilda assim fez. Levantou-se num ápice, tratou da sua higiene e olhou para o seu lindo vestido com reverência. Quase tinha medo de o vestir já. O receio de o sujar ao pequeno almoço era enorme. Mas sabia que a mãe não a queria à mesa sem estar devidamente lavada e vestida. Vestiu-o então com toda a reverência, tomando o maior cuidado para não amassar os folhos. Penteou-se e observou-se ao espelho. Ter uma ponta de vaidade não era pecado, pensava ela. Por isso sorriu para o espelho e disse em voz alta: “Matilda, estás um verdadeiro dia de primavera! Que lindo vestido tu trazes e que bem te fica!” Disse isso e soltou uma pequena gargalhada, rindo da sua própria atitude.

Foi então calçar-se para, finalmente, sair do quarto e dar um abraço nos seus queridos pai e mãe. Olhou para as alpercatas que ia calçar com um pequeno suspiro. Um vestido tão lindo merecia uns sapatos mais bonitos do que as velhas alpercatas mas…não se podia ter tudo e o vestido, para estrear no último dia de aulas, já era uma prenda enorme que tinha de a deixar feliz. Voltou a olhar-se ao espelho, soltou um pequeno suspiro de contrariedade quando olhou, mais uma vez, para as alpercatas, mas escolheu esquecer-se disso e seguir para o pequeno almoço que tão bem lhe cheirava.

Quando chegou à cozinha já os irmãos tinham tomado o pequeno almoço e seguiam, com os seus tesouros nas mãos, a prepararem-se para caminhar até à escola. Queriam aproveitar o tempo, chegar lá mais cedo a fim de mostrar aos amigos o que tinham recebido e, ainda, brincar um pouco antes que começassem as aulas. João tinha recebido um “livro de cowboys” em banda desenhada (João adorava perder-se nessas aventuras dos intrépidos cowboys), Manuel tinha recebido uns berlindes e o mais novo, Joaquim, recebera, um carro vermelho, todo em metal. Os olhos de todos brilhavam de alegria e satisfação. Matilda deu um beijo na mãe e correu dar um abraço apertado ao pai. Que saudades que tinha dele! A presença dele era prenda suficiente para ela. Não esperava qualquer brinquedo novo. Aliás, ela considerava que, com quase 10 anos, já não necessitava de brincar com bonecas. E, para além de tudo, sabia que tinha tido direito a um vestido novo e que as despesas familiares eram muitas.

Sentou-se à mesa, degustando as suas torradas primorosamente barradas com mel, e o seu café, enquanto conversava com o pai, questionando-o sobre todos aqueles dias em que tinha estado ausente. Estava quase a terminar o seu pequeno almoço quando o pai se levantou e foi buscar uma caixa. Dirigiu-se para ela, estendendo-lha, enquanto num sorriso dizia: esta, é para ti.

Matilda nem queria acreditar. Também tinha tido direito a uma prenda! Parecia Natal. Abriu a caixa a medo. Que tesouro poderia ela guardar?! Foi quando retirou a tampa que sentiu os olhos se abrirem desmesuradamente e soltar-se-lhe um pequeno “Oh” Que magníficos!”

A caixa continha nada mais, nada menos que uns belíssimos sapatos pretos brilhantes e, mais importante que tudo, de sola de Ceilão! Ela tinha recebido uns sapatos de sola de Ceilão! Não cabia em si de contente! Não eram umas alpercatas! Eram uns sapatos delicados, lindos, perfeitos, de sola de Ceilão!

Olhou com um ar de interrogação para a mãe: “Mãezinha, posso?!”

Não precisou dizer mais nada. Acenou afirmativamente. Num ápice, Matilde descalçou as velhas alpercatas e calçou os seus sapatos novos. Como lhe ficavam bem! Era precisamente o que faltava para ela se sentir uma verdadeira princesa. Correu a abraçar o pai, mais uma vez. Não poderia ter recebido nada que a deixasse mais feliz!

-Pai, levas-me à escola? – perguntou então a menina.

Será um gosto acompanhar esta princesa – respondeu um pai com um sorriso no rosto. Afinal, ele tinha mesmo de ir ao centro da vila tratar de alguns assuntos. Ficava tudo em caminho.

Foi assim que Matilda saiu de casa, a caminho da escola, sentindo-se maravilhosamente bonita e, acima de tudo, orgulhosa. Aquele que a acompanhava, que a protegia segurando a sua mão pequena naquela sua mão enorme, era o seu pai. Um homem bem parecido, um homem bom, um homem que a deixava orgulhosa. E ali seguiam eles, pelas ruas da vila, em silêncio, sorrindo para a vida e acreditando que havia dias bons e este era um deles. Mais tarde, já na escola, Matilde desligava-se do que dizia a professora apenas para se perder na contemplação dos seus belos sapatos: os seus sapatos de sola de Ceilão!

Este foi e continuou a ser um dia relembrado por Matilda durante muitos anos. Relembrou-o hoje, contando à sua neta o dia em que o pai lhe ofereceu uns sapatos de sola de Ceilão e a acompanhou à escola, enquanto envergava o seu vestido novo. Relembrou a felicidade que sentia enquanto caminhava até à escola. Relembrou o orgulho de chegar à escola acompanhada pelo pai e o orgulho de pisar o chão com aqueles maravilhosos sapatos! Tanto e tão pouco! Esses eram os tempos em que a felicidade residia nas pequenas coisas. E enquanto contava esta história ternurenta à neta, sentiu, como sempre, o pequeno aperto da saudade daquelas pessoas, daqueles tempos que ela recordava através de uns sapatos pretos de sola de Ceilão.